Conselho Regional de Farmácia

De Mato Grosso do Sul

Aspectos das farmácias em Portugal e na União Europeia

Entrevista exclusiva com o Doutor Carlos Maurício Barbosa, professor associado de Tecnologia Farmacêutica da Faculdade de Farmácia da Universidade do Porto (Portugal), fundador da Sociedade Internacional de Farmácia Magistral ISPhC) e membro da sua diretoria. Revista da Farmácia Magistral: Para iniciar nossa entrevista gostaria que o senhor falasse do conceito da farmácia na União Europeia? Carlos Maurício Barbosa: A farmácia na União Europeia obedece ao conceito de farmácia única. Isto é, consiste numa farmácia integrada, na qual encontramos medicamentos industrializados e manipulados, sujeitos ou não a receita médica, e outros produtos, como cosméticos e produtos de higiene corporal, correlatos (que em Portugal designamos dispositivos médicos), suplementos alimentares (como complexos vitamínicos, sais minerais, drenantes, adelgaçantes, etc), artigos de puericultura e produtos fitoterápicos. E ainda todos os serviços farmacêuticos associados à dispensa e ao aconselhamento de medicamentos e outros produtos, à promoção da saúde e prevenção da doença, nomeadamente o monitoramento da pressão arterial, a determinação de parâmetros bioquímicos (como o glicemia ou a colesterolemia), a administração de vacinas, etc. Além disso, a prática da Atenção Farmacêutica, nas suas diferentes vertentes, vem sendo gradualmente implementada nas farmácias europeias. Na generalidade dos casos, a Farmácia europeia é gerenciada por farmacêuticos. Eles atendem a população e a sua atenção está centrada no paciente. O conceito europeu é, portanto, o de farmácia única, em contraposição ao Brasil, que tem drogarias e farmácias de manipulação. Naturalmente, existem algumas diferenças entre os Estados-membros da União Europeia no que respeita à regulamentação do setor farmacêutico. A principal diferença reside na propriedade da farmácia. Há países, como a Inglaterra e a Irlanda, em que, historicamente, a propriedade da farmácia não é do farmacêutico, e outros que persistem, na minha opinião muito bem, em manter a propriedade reservada ao farmacêutico. Em Portugal também foi assim durante muitos anos. Todavia,em 2007, a legislação neste domínio foi alterada e atualmente não obriga que a propriedade seja do farmacêutico. No entanto, ainda é maioritário o número de Estados-membros da União Europeia em que a propriedade da farmácia está reservada a farmacêuticos. Nos últimos anos, tem-se assistido a um movimento na Europa, apoiado por algumas estruturas da União, que visa acabar este ordenamento jurídico do setor farmacêutico. A própria Comissão Europeia instaurou processos judiciais a alguns Estados membros para os obrigar a alterar as suas políticas neste domínio, consideradas protecionistas no entender da Comissão. Todavia, a este propósito não quero deixar de referir algo que considero muito relevante e que, em minha opinião, constitui uma grande vitória dos cidadãos europeus que se preocupam com a Saúde Pública e não com interesses econômicos mais ou menos declarados. Em maio passado o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias proferiu dois acórdãos históricos sobre a propriedade da farmácia, tendo declarado, de forma inequívoca e sem direito a recurso, que, por razões de saúde pública, relacionadas com a qualidade e a segurança na dispensa dos medicamentos, a propriedade da farmácia pode ser reservada a farmacêuticos. RFM: E no que diz respeito a Portugal? Carlos Maurício Barbosa: No que diz respeito ao meu país, quando o atual governo tomou posse, em 2005, logo deu sinais de que pretendia fazer alterações muito radicais no setor farmacêutico. E assim veio a acontecer. No segmento de várias alterações iniciadas nesse mesmo ano, em 2007 passamos a ter uma nova legislação que veio alterar de forma radical o ordenamento jurídico da farmácia portuguesa. Durante muitos anos, a legislação restringia a propriedade da farmácia a farmacêuticos e obrigava que o diretor técnico fosse o dono da farmácia. Hoje em dia, a propriedade da farmácia em Portugal encontrase liberalizada. Não precisa ser de farmacêuticos. Mas a direção técnica continua sendo de exclusividade de um farmacêutico. Gostaria de sublinhar que, na gênese desta alteração, esteve apenas a intenção política do governo em mudar radicalmente a farmácia portuguesa. Não havia na época (nem existe hoje) qualquer necessidade que fundamentasse a mudança de um enquadramento que, felizmente, ainda prevalece em muitos países europeus e continua a mostrar-se o mais adequado ao interesse das populações. De qualquer forma, quando dizemos que a propriedade foi liberalizada, foi somente isto, pois a instalação de farmácias continua reservada, ou seja, não é livre para qualquer pessoa montar um estabelecimento farmacêutico, mesmo sendo um profissional farmacêutico. Continuam a existir critérios demográficos e geográficos para a instalação de novas farmácias. RFM: Quantas farmácias existem em Portugal? Carlos Maurício Barbosa: Hoje existem aproximadamente 2770 farmácias em Portugal. Para a abertura de uma nova farmácia, a legislação exige que, cumulativamente, sejam preenchidos três requisitos. Que exista uma capitação mínima de 3.500 habitantes por farmácia no município. Que a nova farmácia fique distante, pelo menos, 350 metros das outras farmácias. E que seja observada uma distância mínima de 100 metros entre a farmácia e um centro de saúde ou um hospital. RFM: Existem redes de farmácias em Portugal? Carlos Maurício Barbosa: A atual legislação, que, como já referi, veio pela primeira vez abrir a propriedade da farmácia a não farmacêuticos, veio também permitir que cada proprietário possa deter até quatro farmácias. Obviamente, surgiram receios que se formassem redes de farmácias. Mas a realidade demonstra que isso não aconteceu. Na prática, são muito raros os casos de proprietários com mais do que uma farmácia. Neste momento, apesar de três ou quatro grandes grupos econômicos. Por outro lado, as farmácias não estão homogeneamente distribuídas no país (como sucede nos países em que o setor está regulamentado), mas concentradas nos centros urbanos, o que acarreta graves prejuízos para a população. Queriam promover a concorrência e a melhoria dos serviços, mas o resultado foi precisamente o contrário. A propriedade das farmácias está praticamente restrita a esses grupos, que constituíram grandes cadeias, e uma parte importante da população ficou privada de assistência farmacêutica. RFM: Sobre os preços de medicamentos em Portugal? Carlos Maurício Barbosa: Em Portugal, como na generalidade dos países europeus, o preço dos medicamentos industrializados é fixado pelo Estado. Mas isto não se aplica a todos. No caso dos medicamentos não sujeitos a receita médica o preço é livre. No que respeita aos medicamentos manipulados, o Estado estabelece regras para o cálculo do seu preço. Durante muitos anos os medicamentos não sujeitos a receita também tinham o seu preço fixado. Além disso, há pouco tempo, era proibido por lei qualquer tipo de desconto nos medicamentos. Eles tinham o mesmo preço em todas as farmácias. As farmácias distinguiam-se pelo serviço e não pelo preço dos medicamentos, o que muito valorizava a atividade profissional do farmacêutico, em benefício do paciente. Hoje em dia, no contexto da alteração radical que a nossa legislação sofreu e, mais uma vez, com base numa decisão meramente política, a prática de descontos nos medicamentos deixou de ser proibida. Assim, para além dos medicamentos não sujeitos a receita médica, cujo preço é livre, teoricamente os outros também podem ser adquiridos por preços diferentes em farmácias diferentes. Felizmente, os farmacêuticos portugueses não embarcaram numa aventura para a qual, em minha opinião, o governo os quis empurrar e, na prática, os preços dos medicamentos são mantidos pela generalidade das farmácias. RFM: O que o senhor pode falar da instalação de farmácias nos hospitais abertas ao público? Carlos Maurício Barbosa: Este é outro aspecto que as alterações legislativas trouxeram e contra o qual as organizações farmacêuticas manifestaram o seu desacordo. Todavia, mais uma vez, o governo impôs a sua decisão ao país e avançou com essa situação. É importante que fique claro que não estou a falar de farmácias hospitalares, as quais sempre existiram nos hospitais e, obviamente, continuam existindo, destinando-se fundamentalmente aos doentes internados. Estou a falar de farmácias que são abertas por privados nas instalações de hospitais do Estado que ficam abertas ao público 24 horas por dia, 365 dias ao ano. A sua concessão é feita por concurso, com base na melhor oferta para o hospital. Para já, ainda são poucas as farmácias deste tipo que se encontram a funcionar. Mas já existem em alguns dos maiores hospitais portugueses. Isto, obviamente, cria grandes distorções no setor e acarreta graves prejuízos para as farmácias localizadas na proximidade desses hospitais, que sempre serviram os pacientes atendidos nos respectivos serviços de urgência. Como referi anteriormente, o Estado estabelece que uma nova farmácia tem que se localizar a uma distância mínima de 100 metros em relação a um hospital. No entanto, neste caso, o mesmo Estado autoriza e até promove a abertura de farmácias dentro dos próprios hospitais. Salvo melhor opinião, isto parece uma contradição insustentável. RFM: Como é o fracionamento de medicamentos em Portugal? Carlos Maurício Barbosa: As farmácias portuguesas sempre receberam os medicamentos industrializados, seja da indústria ou de armazenistas, em embalagens pré-estabelecidas, de acordo com o que cada indústria define com as autoridades no momento da introdução do medicamento no mercado. As farmácias recebem as embalagens intactas e têm que as dispensar nesse estado. Isto é, não podem fracionar ou individualizar. O fracionamento segue proibido. Todavia, há neste momento uma iniciativa legislativa ainda embrionária, que em breve poderá entrar em vigor, pelo que se perspectiva que as nossas farmácias possam vir a dispensar medicamentos em dose unitária. Com base no número de unidades que o médico venha a prescrever em cada caso. Naturalmente, isto implicará condições técnicas específicas. Vamos aguardar. Mas de uma coisa estou certo, será mais um desafio ao qual os farmacêuticos portugueses, mais uma vez, saberão responder com qualidade.