ENTREVISTA: “Não acreditar na ciência foi o maior erro durante a pandemia”
Em entrevista ao Correio do Estado, o infectologista e pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) Dr. Julio Croda esclareceu diversos pontos a respeito da pandemia de Covid-19 e da epidemia de H3N2 em Mato Grosso do Sul.
Conforme o pesquisador, o controle da pandemia de coronavírus está diretamente atrelado aos investimentos no campo científico, com pesquisas na área de saúde e tecnologia. Para Croda, ignorar a ciência foi o maior erro da pandemia.
“Se não seguirmos a ciência, a conta será paga com vidas. Teremos muitos números de novos casos, além da Covid-19 longa, que são as sequelas da doença que podem ser desenvolvidas por muitas pessoas”, frisou.
Segundo o levantamento do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), o governo federal investiu em 2020 em ciência e tecnologia por volta de R$ 17,2 bilhões, patamar inferior aos R$ 19 bilhões destinados ao setor 11 anos antes, em 2009.
O corte de verbas gerou uma reação em cadeia no País, como a pane da plataforma Lattes, que concentra o banco de dados com informações de todos os pesquisadores brasileiros.
Desde o início da pandemia, em março de 2020, a ciência desempenhou um papel fundamental, com o desenvolvimento de estudos sobre testes, remédios e vacinas contra a Covid-19.
Sobre a variante Ômicron, Croda explicou que a maior taxa de transmissibilidade acarreta uma necessidade maior de vacinados contra o coronavírus.
Enquanto para as variantes originais Delta e Gama a imunidade coletiva seria alcançada com 70% da população vacinada, para a variante Ômicron, as taxas de aplicação de doses precisam ser superiores a 90%.
“É importante que os gestores utilizem mecanismos para aumentar a cobertura vacinal, inclusive, instituindo um passaporte de vacina”, afirmou o pesquisador.
CORREIO DO ESTADO – desde o pico de casos e internações por Covid-19, no primeiro semestre de 2021, até agora, temos visto que a doença passou a ser menos grave para pessoas com o ciclo vacinal completo.
Na avaliação do senhor, essa é uma tendência, principalmente, com a terceira dose chegando a mais pessoas?
Julio Croda – não é que o vírus ficou mais fraco ou menos grave. O que acontece é que a população ganhou imunidade. As pessoas que já receberam pelo menos duas doses da vacina contra a Covid-19 apresentam uma resposta imune ao vírus, e com a dose de reforço essa proteção aumenta ainda mais.
Portanto, a pessoa pode pegar a doença, inclusive a variante Delta, e não desenvolver quadros graves e severos, com hospitalização e óbito.
Em relação à Ômicron, essa variante tende a ser mais leve, então, temos associado a esse contexto a imunidade das pessoas, que garante proteção contra hospitalização e óbito, e uma variante que tende a ser menos letal. Esse conjunto garante proteção e manifestação de sintomas mais leves de coronavírus.
Estamos chegando a um ano do início da vacinação contra a Covid-19, como o senhor avalia esse tempo e a quantidade de pessoas vacinadas até aqui? Na Capital, a campanha está empacada há alguns meses e ainda não conseguiu chegar sequer a 80% do público-alvo com a primeira dose das vacinas disponíveis. Esse índice preocupa ainda?
O índice de vacinação ainda preocupa porque a variante Ômicron é mais transmissível, com a sua proliferação sendo equivalente ao vírus do sarampo, que tem uma taxa de contágio de 12 a 18. A variante Ômicron tem uma taxa de contágio de 10 e vai encontrar as pessoas não vacinadas.
Então, preocupa muito, sim, que não tenhamos atingido ainda 80% a 90% da população vacinada com a dose de reforço. Neste momento, direcionamos a preocupação a essas pessoas sem o quadro vacinal completo e às crianças que ainda não possuem acesso à vacinação.
É importante que os gestores utilizem mecanismos para aumentar a cobertura vacinal, inclusive, instituindo um passaporte vacinal. O que será uma boa medida se na cidade de Campo Grande for observado um aumento de hospitalização de não vacinados com impacto na capacidade hospitalar.
Instituir o passaporte da vacina garante uma maior adesão à campanha de vacinação, principalmente, para preservar leitos hospitalares.
Então, por enquanto, vivemos uma situação tranquila, mas, se houver qualquer impacto em termos hospitalares, será necessário endurecer as medidas e exigir o passaporte vacinal para garantir mais proteção e preservar os leitos de enfermaria e de UTI.
Mato Grosso do Sul ainda não tem nenhum caso comprovado de Ômicron, porém, a variante já está nos estados brasileiros que fazem fronteira com MS. Qual cenário podemos esperar para quando houver a proliferação dessa variante, que é a mais contagiosa, e ela se tornar predominante no Estado?
Existe um delay [atraso] importante, pois Mato Grosso do Sul não sequencia as variantes nos exames para Covid-19 in loco. Os testes são mandados para os laboratórios de referência [como o Instituto Adolfo Lutz (IAL), em São Paulo], o que traz um atraso no diagnóstico. Mas, com certeza, a Ômicron já está circulando no Estado.
Já observamos diversos relatos de profissionais de saúde em serviços privados e públicos afirmando um aumento de pessoas com síndrome gripal, tanto de H3N2 como de Covid-19, e essa Covid-19 é muito provavelmente a Ômicron, que já está circulando em MS, bem como nos estados vizinhos.
O Estado, além da Covid-19, vive uma epidemia de influenza H3N2. Com a circulação desses dois vírus respiratórios, quais as medidas que as autoridades devem tomar para evitar que o sistema de saúde seja impactado?
O Estado precisa ficar muito atento, principalmente, se houver uma sobrecarga de serviços hospitalares. É importante dimensionar a demanda nos postos de saúde e Unidades de Pronto Atendimento, para que a população tenha um atendimento adequado e em tempo oportuno.
É importante também dimensionar a testagem e ofertar exames para a Covid-19 e para a H3N2, para entendermos o que está circulando, e é importante também dimensionar a abertura de leitos de enfermaria e de UTI.
E aí, se o Estado e os municípios mantiverem essa capacidade de ampliação de leitos se houver necessidade, medidas restritivas não são necessárias.
Caso isso não seja possível, é importante, sim, pensar na possibilidade de medidas mais restritivas como já aconteceu no passado, quando houve o toque de recolher, o fechamento de atividades associadas a aglomerações e o cancelamento de shows e eventos que reúnam mais de 500 pessoas.
Do ponto de vista médico, quais os riscos para a população da circulação dessas duas doenças, além de estarmos no período sazonal de dengue, zika e chikungunya?
Quando temos cocirculações de diversos vírus, levando a epidemias concomitantes, isso gera uma grande demanda para o serviço de saúde, ao qual o gestor precisa estar atento e com uma programação para uma rápida expansão de atendimento, contratação de novos médicos, ampliação dos leitos de saúde e serviços hospitalares.
O que se sabe de certo sobre a variante Ômicron e a relação dela com as vacinas disponíveis atualmente? Há indícios de que essa variante seja menos letal do que a Delta e a Gama?
Em relação à Ômicron, ela tem mais escape da resposta imune e é uma variante mais transmissível.
Ainda não sabemos se ela é mais transmissível por conta de características genéticas específicas ou por conta do escape da resposta imune que a gente já sabe, pois temos relatos de infecções em pessoas que já foram previamente infectadas por outras variantes.
Os índices de gravidade relacionados a essa variante parecem ser menores, com menos associação a internações e mortes.
É lógico que a população mais vulnerável a essa variante será a não vacinada. É importante, neste momento de circulação da Ômicron, intensificar a vacinação, completar o esquema com as duas doses e ofertar a dose de reforço.
No caso da nova variante influenza H3N2, a Darwin, que causou surtos em muitas cidades brasileiras, inclusive em Mato Grosso do Sul, quais as características dela? Há alguma diferença, no caso da evolução da doença, em comparativo com as outras variantes em circulação?
Não, a variante H3N3 Darwin é uma cepa da influenza que causa doenças sem maior transmissibilidade e sem maior severidade. Entretanto, essa variante não estava presente no componente da vacina que foi ofertada para a população a partir de abril de 2021.
E, portanto, a população como um todo não tem uma resposta imune adequada a essa variante.
Somando-se a isso, 2021 foi o ano em que em todo o País, não só no Estado, a cobertura contra influenza foi a menor da última década. A baixa cobertura vacinal e a imunização com uma vacina que não contém essa cepa original permitem que o vírus circule mais.
Entretanto, a letalidade e a evolução com casos graves é semelhante aos demais vírus da influenza.
Com o surgimento das variantes Delta, Gama e Ômicron, ainda é possível falar em imunidade coletiva com 70% da população vacinada? Quando o País de fato poderá atingir a imunidade coletiva contra a Covid-19?
Quando falávamos das variantes originais, o Ro – a taxa de transmissão – era 3,5. Hoje em dia, estamos com uma variante que tem a taxa de 10, e o cálculo da imunidade coletiva é -1 sobre 10. Neste caso, para atingirmos imunidade de rebanho, não é mais 70% [da população vacinada], vai para acima de 90% de vacinação.
Para atingirmos a imunidade acima de 90%, é preciso vacinar as crianças com imunobiológicos que sejam eficazes para isso.
É importante entender a vacina atualmente, principalmente em relação à Ômicron, já que ela só previne a infecção com a dose de reforço. Com o esquema vacinal completo, a sua efetividade é 80% com as três doses; e em torno de 40% a 50% com duas doses.
Nesse sentido, entendemos que a Covid-19 se tornará endêmica, teremos períodos sazonais da doença, e é importante que as pessoas que apresentam maior fragilidade para a doença estejam com o seu esquema vacinal completo.
Com o surgimento de novas cepas da gripe e novas variantes ainda mais contagiosas de Covid-19, o uso da máscara pode ficar na vida das pessoas a longo prazo?
Nós ainda vamos usar máscaras por um bom tempo. Precisamos vacinar as crianças de cinco a 11 anos e garantir a dose de reforço para todos. Agora, com a Ômicron, a intensidade da transmissão volta a aumentar e, por enquanto, não é recomendado que a gente deixe de usar máscara.
Para o senhor, ignorar a ciência foi o maior erro cometido na pandemia? Como o senhor avalia a falta de investimento no setor científico do País?
Ignorar a ciência foi o maior erro na pandemia. O tempo mostra que a ciência sempre estará certa: se não a seguirmos, a conta será paga com vidas, muitos números de casos e a Covid-19 longa, que são as sequelas da doença.
Então, não adianta: fora da ciência não há muita solução, é importante, sim, seguir o que ela preconiza.
O Brasil precisa investir mais na área científica justamente para gerar maiores evidências, melhores condutas e prevenir adoecimentos e óbitos por diversas doenças.