O cartão que virou cartolina
O projeto do governo federal para criar o cartão eletrônico do SUS consumiu R$ 418,6 milhões sem produzir benefícios para os pacientes
* Matéria enviada pelo Conselheiro Ricardo Ferreira Nantes
Um programa lançado há dez anos pelo governo federal prometia modernizar o atendimento da rede pública de saúde, reduzir filas em hospitais e facilitar o planejamento do setor. Uma das principais inovações do programa seria a criação de um cartão magnético nacional para os usuários do Sistema Único de Saúde (SUS).
O cartão daria acesso em tempo real a informações sobre o atendimento prestado a cada paciente desde o nascimento. Teria registros de consultas, exames e da medicação prescrita durante toda a vida. Ambiciosa para seu tempo, a idéia se mostrou cara e inviável diante de obstáculos impostos por diferenças regionais, suspeitas de fraudes em licitações e resistência dos profissionais da saúde. O que deveria melhorar a vida dos brasileiros se transformou em um caso explícito de desperdício do dinheiro público.
Uma das intenções dos gestores federais era montar um cadastro nacional dos usuários do SUS, um gigantesco banco de dados com o perfil da saúde de quase toda a população brasileira.
Serviria também como uma câmara de compensação financeira para que os repasses de dinheiro fossem feitos para os municípios de acordo com os atendimentos, e não proporcionalmente ao número de habitantes, como é hoje. A partir de 2001, o ministério distribuiu 10 mil terminais de atendimento e contratou serviços para o treinamento de 13 mil funcionários públicos.
A capital de Mato Grosso do Sul, Campo Grande, foi uma das cidades escolhidas para o projeto piloto. A prefeitura da cidade desenvolvia, havia sete anos, um cadastro único dos usuários do SUS, e o governo federal resolveu aproveitar a experiência. Em setembro de 2002, Campo Grande recebeu do Ministério da Saúde uma remessa de500 mil cartões magnéticos e200 terminais de atendimento. Passados oito anos, os terminais estão estocados numa sala da Secretaria de Saúde da prefeitura. Não se sabe quantos usuários da cidade ainda mantêm os cartões. Os documentos ainda existentes, embora eletrônicos, têm a mesma função de um cartão de papel, pois não há equipamentos que façam a leitura. Situações semelhantes se repetem nas outras cidades onde o sistema foi testado.
O TCU – Tribunal de Contas da União não abriu uma investigação, com a justificativa de que era preciso resolver antes um processo judicial em que um dos consórcios derrotados na licitação questionava o processo. A pendência tramita até hoje nos tribunais. Em todo esse tempo, o ministério continuou a fazer repasses financeiros para o programa. À medida que o sistema era implantado, começaram a surgir outros entraves. As empresas deveriam desenvolver programas de computador para interligar as diversas unidades espalhadas pelas cidades do projeto piloto. Esse trabalho não foi realizado como deveria.
De acordo com o Ministério da Saúde, os problemas decorreram principalmente de questões de infraestrutura, como deficiências de redes elétricas e de transmissão de dados.
O Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) produziu no ano passado um diagnóstico sobre o cartão do SUS. Segundo o documento, houve resistências dos profissionais da saúde, principalmente dos médicos, que reclamaram de dificuldades na operação dos equipamentos e do aumento de trabalho em decorrência da necessidade de lançar dados em dois sistemas, o antigo e o novo. Agora, às vésperas de uma nova mudança no comando do país, o Ministério da Saúde anuncia um novo sistema, que aparentemente não será concluído até o fim do ano. A primeira tentativa de implantação do cartão do SUS não deu certo. Espera-se que essa nova tentativa seja mais bem-sucedida.
O projeto de Cartão Nacional do SUS consumiu R$ 418,6 milhões, mas não vingou O QUE ERA PARA SER Um cartão magnético com dados do usuário, facilitando a identificação do cliente, a marcação de consultas e exames. As informações ficariam num grande banco de dados O QUE VIROU um grande cadastro de nomes e endereços com 171 milhões de registros, mas nenhuma funcionalidade. Em alguns lugares, como Brasília, o cartão usado pelo SUS é uma fichinha de papel.