Pacientes recebem órgãos doados com HIV no RJ após laboratório liberar exames; farmacêuticos especialistas de MS comentam
Uma triste situação na área da saúde foi destaque nos jornais nesta quinta-feira (11). Seis pacientes transplantados do Rio de Janeiro teriam testado positivo para HIV após receberem órgão infectado.
A Secretaria de Saúde do RJ considerou o episódio uma “situação sem precedentes” e inédita na história do serviço de transplante no Estado carioca. As autoridades estão investigando o caso.
O que aconteceu?
Seis pessoas que estavam na fila do transplante e receberam órgãos infectados pelo HIV de 2 doadores e agora testaram positivo para o vírus. Segundo o governo do RJ, o possível erro foi identificado em dois exames emitidos pelo laboratório PCS Lab Saleme, contratado pela Secretaria de Saúde para realizar a sorologia de órgãos doados.
Após identificado o erro, a Coordenadoria Estadual de Transplantes e a Vigilância Sanitária Estadual interditaram o laboratório e o caso é investigado pela Delegacia do Consumidor.
O caso foi descoberto em setembro quando um paciente transplantado foi ao hospital com sintomas neurológicos e teve o resultado para HIV positivo. Há relatos de que ele não tinha o vírus antes. Esse paciente recebeu um coração doado em janeiro. A partir desse episódio, as autoridades refizeram todo o processo e chegaram aos dois exames realizados pelo laboratório PCS Lab Saleme.
A primeira coleta foi feita em janeiro, onde foram doados os rins, o fígado, o coração e a córnea, e todos, segundo o exame do laboratório, deram não reagentes para HIV.
Sempre que um órgão é doado, uma amostra é guardada. A Secretaria de Saúde do RJ fez uma contraprova do material e identificou o HIV. Em paralelo a esse primeiro exame, a Secretaria ainda rastreou os demais receptores e confirmou que as pessoas que receberam um rim cada também deram positivo para o HIV. A que recebeu a córnea, que não é tão vascularizada, deu negativo. A que recebeu o fígado morreu pouco depois do transplante, mas o quadro dela já era grave e a morte não teria relação com o HIV.
No dia 3 de outubro, mais um transplantado também apresentou sintomas neurológicos e testou positivo para HIV. Essa pessoa também não tinha o vírus antes da cirurgia. Cruzando os dados, chegaram a outro exame errado.
Farmacêuticos especialistas comentam
O farmacêutico bioquímico de Mato Grosso do Sul, Flávio Shinzato, considerado um dos maiores especialistas do Estado no setor laboratorial e membro do Grupo Técnico de Trabalho em Análises Clínicas do Conselho Regional de Farmácia de Mato Grosso do Sul (CRF-MS), comenta o caso amplamente divulgado pela mídia nacional.
“O funcionamento de um laboratório de análises clínicas para atuar na emissão de diagnóstico precisa ser muito bem estruturado administrativamente e tecnicamente com critérios e controle de qualidade, principalmente no que se refere a controle de processos. Os exames laboratoriais, dependendo da complexidade do tipo de exame, do caso do paciente e outros fatores, sofrem muitas interferências. Por isso é necessário um controle de qualidade muito rígido na hora de preparar o paciente para a realização da coleta da amostra e isso inclui também o controle dos reagentes que serão utilizados”, destaca Flávio Shinzato que também é conselheiro regional de Farmácia no CRF-MS.
Segundo Shinzato, os exames laboratoriais são realizados diretamente com o paciente ou ainda em casos mais específicos, como foi em relação aos transplantados, onde um laboratório fez exames em órgãos para a doação ou não a pacientes que aguarda na fila dos transplantes. Ele reforça que todo o conjunto de mão de obra e matéria-prima que integra o funcionamento de um laboratório deve ser cuidadosamente definido pela equipe responsável.
“Além dos reagentes que utilizamos, todo o insumo necessário para a realização dos exames deve ser de boa qualidade e ter uma excelente procedência. Desta maneira evitamos interferências dentro dos dados analíticos pesquisados no diagnóstico e com isso teremos resultados mais precisos.
Flávio Shinzato destaca o diferencial dos profissionais farmacêuticos na análises clínicas. “Neste contexto, os farmacêuticos são bem criteriosos desde a sua formação, onde adquirem uma base essencial para atuar na área, pois conhecem de processos a controles chegando até o laudo final com alta para entregar ao paciente”, destaca.
Sobre o caso mencionado na reportagem, onde seis pacientes transplantados teriam recebido órgãos com HIV depois de laudos emitidos por um laboratório liberando os órgãos para a doação, o especialista comenta que é importante estar atento a determinados critérios quanto ao funcionamento de um laboratório. Esses requisitos valem na hora da contratação para o serviço, seja por parte do poder público ou ainda pela população que precisa periodicamente de exames laboratoriais.
“Todos que utilizam serviços laboratoriais devem saber que um laboratório precisa ter suas documentações vigentes, como alvará sanitário, certificado de regularidade no respectivo conselho de classe e neste caso eu sempre recomendo a atuação de farmacêuticos bioquímicos e registro no CRF-MS, alvará de funcionamento e localização, entre outros. Também é importante destacar o laboratório deve oferecer de maneira disciplinada aos seus colaboradores os treinamentos e atualizações técnicas, de modo que todos entendam e atuem dentro das boas práticas exigidas no cumprimento dos programas de qualidade e processos administrativos”.
Flávio Shinzato reforça que a comunicação com o paciente é extremamente necessária. “O diálogo com o usuário, no caso o paciente ou a avaliação dos documentos que acompanham os órgãos [como foi o caso da notícia] deve ser analisado criteriosamente, principalmente para entender as possíveis interações, como alimentos ingeridos, medicamentos, entre outras percepções que o responsável técnico pelo laudo precisa estar vigilante durante o seu trabalho”.
Em relação ao principal ponto da reportagem que foi destaque nacional, que é a realização das sorologias nos órgãos que foram destinados para a doação em pessoas na fila de transplantes, Shinzato destaca que “são exames mais especializados que exigem ainda mais atenção da equipe quanto ao controle rigoroso dos reagentes utilizados, como também a calibragem precisa dos equipamentos quanto a manutenções corretiva e preventiva, e também em relação as possíveis interferências químicas nas reações sorológicas. EM muitos casos, é recomendado refazer os testes, ainda mais em possíveis situações de alertas em relação a determinados diagnósticos, como é o caso do HIV, onde possa haver ou não um fator contaminante ou um acidente devido a transfusão, ou ainda um procedimento cirúrgico. Então, nós teríamos neste caso exemplificado, uma janela imunológica que desperta a atenção para exames que identificam HIV e outras viroses, por exemplo”.
Sobre o funcionamento do laboratório carioca, Flávio Shinzato afirma não opinar sobre a atividade empresarial e acredita que as autoridades estão fazendo o seu trabalho junto ao ocorrido, mas reforça que no Brasil temos muitos laboratórios de excelência, principalmente em Mato Grosso do Sul onde muitos desses estabelecimentos são comandados tecnicamente por farmacêuticos que possuem ampla capacidade técnica para realizar todos os tipos de exames.
A importância da vigilância sanitária, por exemplo
O farmacêutico Cesar Arão, profissional atuante há anos na vigilância sanitária municipal e conselheiro regional de farmácia de Mato Grosso do Sul, “destaca que é nesta hora que compreendemos na prática a importância das atividades fiscalizatórias e isso inclui as vigilâncias. Quando as vigilâncias atuam com eficiência na sua gestão e planejamento junto aos estabelecimentos de saúde, por exemplo, isso comprova que existe ali uma defesa de diferentes personagens, como os profissionais de saúde, dos donos do estabelecimento e, principalmente, da população usuária dos serviços e qualquer um de nós pode estar sendo ali o usuário”, explica ele.
A Vigilância Sanitária de laboratórios de análises clínicas tem por finalidade garantir a qualidade técnica e confiabilidade dos exames realizados, visando reduzir os índices de erro laboratorial e o cumprimento das normas de biossegurança, na busca de minimizar, ou mesmo eliminar os riscos sanitários, além de assegurar a entrega de um laudo seguro e confiável.
Nesse sentido, a Licença Sanitária o documento que atesta que o laboratório clínico respeita o regramento sanitário, atende e executa com esmero as Boas Práticas Laboratoriais, além de cumprir rigorosos procedimentos de controle e garantia de qualidade e normas de biossegurança.
O papel da vigilância sanitária em diferentes áreas de funcionamento de uma empresa é essencial para garantir as condições de qualidade que todos precisam ter na hora de explorar uma atividade. É importante destacar que estabelecimentos públicos e privados passam por fiscalizações, pois ali existe uma prestação de serviços que a população utiliza. É preciso compreender que as vigilâncias sanitárias, assim como as fiscalizações dos conselhos de classe, são as maiores parceiras da sociedade e atuam na defesa de todos, do usuário, que é o cidadão, e do empresário ou gestor, que é quem oferece algo”, conclui Cesar Arão, que também é membro do Grupo Técnico de Trabalho em Análises Clínicas do CRF-MS.
Conforme noticiado na imprensa nacional, a Secretaria de Saúde do Rio de Janeiro e o laboratório envolvido no caso se manifestaram por meio de nota:
Secretaria de Saúde do RJ:
“A Secretaria de Estado de Saúde (SES) considera o caso inadmissível. Uma comissão multidisciplinar foi criada para acolher os pacientes afetados e, imediatamente, foram tomadas medidas para garantir a segurança dos transplantados.
O laboratório privado, contratado por licitação pela Fundação Saúde para atender o programa de transplantes, teve o serviço suspenso logo após a ciência do caso e foi interditado cautelarmente. Com isso, os exames passaram a ser realizados pelo Hemorio.
A Secretaria está realizando um rastreio com a reavaliação de todas as amostras de sangue armazenadas dos doadores, a partir de dezembro de 2023, data da contratação do laboratório.
Uma sindicância foi instaurada para identificar e punir os responsáveis. Por necessidade de preservação das identidades dos doadores e transplantados, bem como do encaminhamento da sindicância, não serão divulgados detalhes das circunstâncias.
Esta é uma situação sem precedentes. O serviço de transplantes no Estado do Rio de Janeiro sempre realizou um trabalho de excelência e, desde 2006, salvou as vidas de mais de 16 mil pessoas”.
Nota do Laboratório PCS Lab:
"O laboratório PCS Lab abriu sindicância interna para apurar as responsabilidades do caso envolvendo diagnósticos de HIV em pacientes transplantados ocorridos no Estado do Rio de Janeiro. Trata-se de um episódio sem precedentes na história da empresa, que atua no mercado desde 1969.
O laboratório informou à Central Estadual de Transplantes os resultados de todos os exames de HIV realizados em amostras de sangue de doadores de órgãos entre 1º de dezembro de 2023 e 12 de setembro de 2024, período em que prestou serviços à Fundação de Saúde do Governo do Estado. Nesses procedimentos foram utilizados os kits de diagnóstico recomendados pelo Ministério da Saúde e pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
O PCS Lab dará suporte médico e psicológico aos pacientes infectados com HIV e seus familiares; e reitera que está à disposição das autoridades policiais, sanitárias e de classe que investigam o caso."